Vi meu chefe arrancar os cabelos, literalmente. E ele não era o único.
Há pouco mais de quinze dias fomos trancados no laboratório de pesquisas onde trabalhamos. Dormíamos no segundo andar, onde não haviam experiências bizarras sendo feitas. Ajeitávamos como podíamos nas camas de campanha que o exército enfiou em cada canto do lugar. Dispensaram os bolsistas e todos que não eram funcionários com carteira assinada. Mantiveram os pesquisadores, auxiliares de pesquisa e estagiários. Alguns alunos quiseram ficar. Mas no geral, ninguém quis. Nem os que ficaram.
Havia roupas limitadas. O exército entregou um pacote de roupas – macacões, no geral – para cada um, e a lavagem dessas roupas era feita uma vez por semana. A alimentação deixou de ser feita no refeitório. Lá estava o estoque da comida horrível e insossa de exército. Agora eles levavam diariamente um número contado de latas até o laboratório, onde colocamos água da torneira. No fundo da lata há um produto químico que com a água, esquenta, só pra reidratar a comida liofilizada. Os alojamentos que havia no campus do laboratório foram usados como celas para coisas indizíveis e inomináveis. Do lado extremo do prédio, mais próximo do alojamento, dava pra ouvir os urros horrendos que vinham de lá. Ninguém queria ir pra lá. Havia um tipo de barreira invisível, a qual as camas de campanha espalhadas pelo andar de cima não ultrapassavam, uma vez que os sons do prédio ao lado tornavam o sono – e a sanidade – impossível.
No começo dava pra ligar pros familiares. Explicar por que estávamos presos ali. Depois a comunicação tornou-se impossível. As linhas foram cortadas, e nenhum “fardado” dizia o motivo. Quando a bateria do último celular cessou e o último carregador foi confiscado, nós ficamos isolados do mundo.
Na verdade, nós havíamos dito aos familiares que tudo ficaria bem, que era só até descobrirmos o que estava acontecendo, que logo seríamos liberados. A grande questão é que não sabíamos por que resolveram nos fechar ali. Desde o início, quando o exército chegou, achei que iam nos levar pra casa. Mas o que fizeram foi descarregar caixas enormes. Umas trinta delas. Entraram nos alojamentos, arrancaram portas, substituíram por barras, e colocaram aquelas coisas lá. Depois nos proibiram de sair. Disseram que havia sido decretada Lei Marcial naquela tarde e que era nosso dever cívico descobrir como aquela praga funcionava. Prometeram nos libertar assim que fosse descoberto qualquer avanço.
E passaram-se quinze dias.
O andar de baixo, o de pesquisas, fora completamente reformulado. No Laboratório de Nível 2 foram implantadas sistemas de barreiras para Biossegurança de nível 4. O único do país, creio eu. Lá ficavam as amostras potencialmente perigosas, mas ninguém sabia como se dava a transmissão e ninguém queria ser a cobaia de testar.
Aliás, cobaias. As trezentas que tínhamos, a maioria já sendo testada para outras coisas antes do aprisionamento, morreram na primeira semana, sob qualquer tipo de exposição à doença.
Nos primeiros dias, algumas pessoas surtaram, achando que era um absurdo nos expor assim, tão próximos àquilo. Mas até agora ninguém foi contaminado.
Fui designado à área de testes em células humanas. Até agora não dá pra dizer que há qualquer tipo de avanço.
O primeiro passo foi extrair sangue de uma das amostras trazidas pelo exército e presas no alojamento. Não sei como conseguiram, mas trouxeram vários frascos de um sangue escuro e com o dobro da viscosidade aparente do sangue humano. Olharam isso no microscópio.
Todos os resultados que eram obtidos eram escritos num grande quadro branco. Essa primeira análise não foi diferente. Estava claro ali. Não havia células humanas. Nenhuma. Só um monte de bactérias meramente semelhantes a glóbulos vermelhos, produzindo uma infinidade de substâncias que sabe-se lá o que são.
O sangue foi centrifugado e as bactérias foram isoladas. Parte disso foi inoculado em algumas das cobaias, que morreram todas. Outra parte sofreu extração de seu DNA, mas os resultados de eletroforese indicaram que o DNA é absurdamente grande para uma bactéria. Mandaram isso pra sequenciamento de DNA, mas os resultados ainda não chegaram. Ao que parece, a sequencia pode ser maior que a humana, o que torna quase impossível o sequenciamento rápido e preciso com o equipamento que dispomos aqui. E uma outra pequena parte das bactérias isoladas foram trazidas até meu grupo de pesquisa pra inocular nas células embrionárias que já tínhamos.
Basicamente, quando inoculadas, as bactérias destroem completamente todas as células que encontram pela frente, e passam a produzir seus próprios metabólitos.
Ainda estamos tentando sequenciar o DNA absurdo dessa coisa. Também estamos tentando manter a sanidade, vendo a capacidade de transmissão e destruição que isso tem, sem contato com o mundo exterior e presos ao lado de um enorme zoológico de horrores que se tornou o alojamento.
Há seis dias não sei o que se passa lá fora.
- primeiro relato