É claro que Sophia estava lá.
Os motivos eram muitos. Gostava da matéria, gostava da forma com que Richard levava tudo isso a sério, admirava as respostas irônicas que o professor lançava aos alunos e tinha uma enorme vontade de conversar com ele. Simplesmente conversar. Passar horas discutindo sobre tudo.
Sophia era como uma irmã mais velha, do tipo que dá orgulho, do tipo que você quer ser quando crescer, ainda que tenham a mesma idade. Lembro que já sabia o que queria da vida numa época que as meninas ainda querem ser professoras ou bailarinas. E eu sentia que ela podia ser exatamente tudo o que quisesse. E talvez por tudo isso ela admirasse tanto Richard, de uma forma tão diferente das outras meninas da nossa idade. Eles conversavam sobre a vida, sobre política, sobre a bolsa de valores se fosse conveniente. Tinha a impressão de que a beleza tão farta que cansava a vista de quem olhava para Richard simplesmente não adentravam nos olhos de Sophia.
- É uma questão de educação. – dizia Richard, com um sorriso que instigava – As pessoas tratam bem aquele que não gostam pra parecerem mais educadas, quando por dentro estão matando o outro de formas cruéis. Eu prefiro chamar a educação de hipocrisia. Acho que estou velho demais pra me importar.
Richard continuou sorrindo, e na maioria das vezes o fazia. Ainda que fosse um homem bastante sério, predominava a ironia em seu comportamento. Gostou de observar as reações dos cinco que estavam na mesa redonda de filosofia. Já não mais discutiam assuntos muito tensos. Agora apenas relaxavam e esperavam o horário de sair.
- É uma tendência normal do ser humano proteger quem ama e ignorar quem odeia. – disse Sophia, concordando.
- E o pior é que falando assim parece tudo muito simples. – disse Phelipo, um dos garotos da turma de Sophia. Ele arrumou os óculos de aros grossos sobre o nariz e então continuou – Na maioria das vezes, com as pessoas que realmente importam, as que incomodam, não se sabe se amamos ou odiamos.
A frase de Phelipo ainda ecoa na cabeça de Richard, não há sombra de dúvidas disso. Mas naquele momento, ele simplesmente riu.
- Acho que está exagerando, Phelipo. Nada precisa ser tão complicado. A vida, como já dissemos aqui, é simples. – disse Richard.
Richard viu o garoto esboçar uma palavra, mas não disse nada. Conteve-se no último momento, e o professor entendeu que era porque estava prestes a discordar. Os alunos tinham certo medo em ir contra sua palavra. Não sabia se porque consideravam que estava sempre certo ou por medo de uma resposta seca ou irônica demais.
- Pode falar, Phelipo.
- Acho que o que ele quer dizer – começou Sophia, atraindo a atenção, quando Phelipo simplesmente deu de ombros – é que qualquer um que diga isso não viveu o suficiente.
Todos tinham medo de contrariá-lo, exceto Sophia.
- Acho que tenho pelo menos o dobro da sua idade. – ele respondeu, quase ofensivo.
- E é isso que mais impressiona. Talvez seja pela sua facilidade em separar os alunos em bons ou ruins – coisa que ninguém discordava, nem ele -, mas pelo menos eu, como opinião pessoal, rotulo menos e observo mais, e há traços nas pessoas que desgosto e que gosto.
- É uma visão bastante aberta, concordo. – disse Richard – Mas não há como simplesmente amar e odiar alguém.
- Eu amo suas aulas de Filosofia. Odiava suas aulas de Matemática. – disse John, um garoto sentado mais ao fundo.
John era a prova viva da inteligência de Richard, pois havia tido aula com ele em outro colégio, de Matemática. Richard havia se formado e exercido em duas áreas completamente diferentes, com a mesma qualidade de aprendizado e interesse. Lia mais que os professores de português. Participava mais de fóruns de Matemática que os professores da matéria.
- Estourou o motim da mesa redonda. – disse Richard, abrindo os braços. Então riu, satisfeito com seus alunos.
E assim, o último sinal do dia tocou. Ele esperou o barulho da sirene passar para agradecer a presença de todos e se despedir. Sophia, no entanto, ficou, sem nem fazer menção de sair. Richard não se impressionou.
- Estou realmente feliz com o rumo que esse grupo está tomando. – disse Richard, quando os demais já haviam saído e ele estava acabando de guardar seu material de professor – Estão começando a contestar.
- Vai dizer que disse aquilo só pra nos testar. – desafiou Sophia.
- Não, eu realmente acredito que é muito simples decidir se amo ou odeio alguém. Claro que há muitos sentimentos no meio do caminho, mas os extremos são opostos demais para se misturarem.
Sophia deu de ombros.
- Se você diz.
- Ora, não comece a concordar comigo. – ele mandou, sorrindo. Tinha um sorriso absurdamente bonito – Você é diferente justamente por contestar.
- Ah, claro. – ela riu, levantando-se com a mochila nas costas – E você é diferente justamente por ser o maior cabeça dura que esse mundo já viu.
- Você deve contestar, eu também.
- Não concordo com uma palavra do que está dizendo…
- Mas defenderei até a morte seu direito de dizer o que pensa. – completou Richard, bastante satisfeito.
- Voltaire. – ela terminou. – Seu antepassado, muito provavelmente.
Richard riu e também carregou sua bolsa com seu notebook. Os dois saíram da sala, certos de que viam um amigo um no outro.
Richard achava Sophia além da sua idade. De corpo, nada mais que uma menina de dezessete anos, com seus cabelos negros, lisos na raiz, formando ondas grandes do meio para o fim. Olhos tão verdes quanto era possível e o rosto pálido o suficiente pra que ganhasse o apelido de fantasminha camarada no primeiro ano. Havia tido alguns namorados, pelo que ele se lembrava, e sabia que – ou pelo menos percebera –John era completamente apaixonado por ela. Era uma garota cheia de vida, inteligente, que ele admirava, com quem ele gostava de conversar.
Talvez – e ele já tinha pensado nisso várias vezes – ela fosse uma mulher presa num corpo de menina. Sua aluna favorita. Sem sombra de dúvidas.
Talvez Richard a levasse tão a sério que disso derivou uma confiança grande demais.